Riso? Alguém jamais se importa com o riso? digo, rir realmente, além da brincadeira, da caçoada, do ridículo. Rir, satisfação imensa e deliciosa, satisfação completa...
Eu dizia a minha irmã, ou ela me dizia, vem, vamos brincar de rir? Deitávamos uma ao lado da outra numa cama e começávamos. Fingindo, é claro. Risos forçados. Risos ridículos. Risos tão ridículos que nos faziam rir. Então ele vinha, o verdadeiro riso, o riso inteiro, nos levar em sua imensa vaga. Risos explodidos, retomados, sacudidos, desencadeados, risos magníficos, suntuosos e loucos. E ríamos até o infinito do riso de nossos risos... Ah, o riso! Riso de satisfação, satisfação do riso; rir é viver de maneira muito profunda... O texto foi tirado do livro Parole de Femme escrito por uma das apaixonadas feministas que marcaram com um traço característico o clima de nosso tempo (1974). É um manifesto místico da alegria. Ao desejo sexual do macho, dedicado aos instantes fugazes da ereção, portanto fatalmente associado à violência, ao aniquilamento, ao desaparecimento, a autora opõe, exaltanso-o como seu oposto, o prazer feminino, suave, onipresente, contínuo... Segundo a autora até a morte é um fragmento de alegria, e que só o macho a teme, porque está miseravelmente preso a seu pequeno eu e a seu pequeno poder... No alto, como se fosse a abóbada desse templo da volúpia, explode o riso, transe delicioso da felicidade, auge extremo da alegria. Riso de satisfação, satisfação do riso. Incontestavelmente esse riso está além da brincadeira, da caçoada, do risículo. As duas irmãs deitadas na cama não riem de nada de preciso, o riso delas não tem objeto, é a expressão do ser que se alegra em ser.
É justamente esse riso que riem Michelle e Gabrielle. Elas saem da papelaria, se dão a mãoe, na mão que está livre cada uma balança um pequeno embrulho onde há papel colorido, cola e elásticos.
_ Mme. Raphael vai ficar entusiasmada, você vai ver - diz Gabrielle, e emite sons agudos e descontínuos. Michelle concorda com ela e faz mais ou menos o mesmo barulho.
Texto em itálico: (Annie Leclerc, Parole de Femme, 1976, apud Milan Kundera, O livro do riso e do esquecimento, 1987)
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