Uma biblioteca e os anjos ajoelham No metrô, lia o jornal e pensava como é pequeno e pretensioso esse goleiro Rogério Ceni menosprezando a jogada de Robinho e o gol do Santos. Ele não viu mérito no Robinho, viu desatenção da sua zaga. Aliás, o Ceni poderia se aposentar com mais dignidade. Então, cheguei ao meu destino, Carandiru. Lá está a Biblioteca São Paulo. Muitos anos atrás, quando Maria do Rosário, minha mãe, mulher simples de Araraquara, exclamava ao saber que uma coisa boa tinha acontecido: "Os anjos estão ajoelhados." Na segunda-feira, quando saltei do metrô e atravessei a extensa e ensolarada Praça da Juventude, rumo à biblioteca, percebi que no céu os anjos estavam ajoelhados e provavelmente as 11 mil virgens também, agradecendo por mais uma biblioteca nesta cidade. Confesso que, além dessas legiões espirituais, também os escritores, professores, leitores estão agradecendo. Quem abre uma biblioteca deve receber indulgência plenária. Quantos ainda sabem o que são indulgências? Neste Brasil, onde livros custam caro, as bibliotecas são a solução. Na infância e juventude, tive a sorte de contar com duas. A do meu pai onde li de Quo Vadis a Os Sertões, de Robinson Crusoe a A Ilha do Tesouro, de O Rio de Janeiro do Meu Tempo, de Luiz Edmundo (e como eu gostava), a Ouro Sobre Azul, de Taunay. Também não me esqueço que li em "profundidade" Nossa Vida Sexual, de Fritz Khan, que meu pai escondia atrás dos livros. Depois, veio a fase da biblioteca municipal que tem o nome de Mário de Andrade. Almoçava, voava para a Prefeitura e me enfiava na mesa, devorando livros. Lemos, meu grupo e eu, tudo o que era legível. Depois, diversificamos. Hugo Fortes, que seria advogado, transitou pela Revista dos Tribunais, porque lá havia, sem que atinássemos com a razão, centenas de volumes. Sergio Fenerich circulou por dentro dos 116 volumes de Camilo Castelo Branco. Os livros de Jorge Amado ficavam trancados numa gaveta, menores não podiam levar, ler. Sei o que é uma biblioteca, sua aura, seu espírito. Eu me fiz dentro delas, muitas vezes lendo ao lado de Luis Roberto Salinas Fortes, Zé Celso, Marco Antonio Rocha, Wallace Leal ou Sidney Sanches que mais tarde foi desembargador e presidiu o Supremo Tribunal Federal. Coube a ele decretar o impeachment do Collor. Quem pode com Araraquara...? Que responda o Celso Lafer, que conhece como funcionam os tentáculos da cidade. Ou FHC, que levou a Ruth de lá. Na Biblioteca São Paulo, circulando pelo saguão tomado pela luz do sol (Viva! Uma biblioteca iluminada, ventilada, não soturna), antes de subir para a ala dos adultos, vi as fileiras de computadores e os montes de livros infantis ao alcance das mãos. E gibis, hoje histórias em quadrinhos. As crianças poderão agarrar, ler, olhar, mexer, virar, que livro é feito para ser manipulado, assim é que a gente se apaixona por objetos e pessoas. Tocando, cheirando, sentindo, deixando-se penetrar. Basta de bibliotecários proibindo, não mexa, não rasgue, não leve, não estrague, não deite no chão, não, não, não. Biblioteca é divertimento. Claro, alguns deveres, algum sentido de responsabilidade. Uma vez, décadas atrás, ao me separar, minha ex-mulher mudou-se para Campo Grande, os meninos entraram para a escola. Fui visitá-los e Daniel naquele dia demorou para o almoço. Quando entrou em casa estava "pê" da vida. Tinha feito alguma transgressão e a diretora o prendeu... na biblioteca. Naquela escola, a biblioteca era sinônimo de punição. Castigo? Biblioteca! Bibliotecas são lugares de prazer, convívio, leitura, diversão, devedês, cedês, teatro, música, computador, paquera, tudo o que agita o mundo. Nada de solenidades. O espaço da Biblioteca São Paulo, estatal, repousada sobre um verde luminoso, dissolverá os fluidos deixados pelo presídio. Bela ideia a de aproveitar o lugar, imenso, agora aconchegante, dirigido por Magda Montenegro. Escritores mesmo vi poucos na inauguração: Celso Lafer, Jorge Caldeira, Fernando Henrique Cardoso, José Gregori. Megalivreiros como Samuel Seibel e Pedro Herz. Acrescento Nina Horta com seus livros deliciosos, além dos canapés que ela serviu. O de papoula, ah, meu Deus! Tomara servissem todos os dias. Bibliotecárias vieram de Sorocaba, Batatais e outras cidades. E o Luis Alves, da editora Global, o Hubert Alquéres e o Carlos Haddad da Imprensa Oficial, o Goldfarb, que comanda o Jabuti (vai dar um Jabuti para a nova biblioteca?), a Roseli, da Câmara Brasileira do Livro, a Mona Dorf ? tão lindinha ?, que tem programa de literatura na internet (Letras e Leituras www.letraseleituras.com.br). Livros e biblioteca foram a festa no começo da semana, tomara continuem a ser pelo ano, pela vida. Alguém veio me perguntar se concordo com que moradores de rua possam retirar livros. Sim, se quiserem, também eles têm o direito de ler. E se roubarem? Povo não rouba livro, respondi, em geral quem rouba é intelectual e estudante universitário duro. Já dei muito livro a morador de rua aqui na João Moura. Dei até óculos. Tinha um que lia e relia a Bíblia, devia saber de cor. Dei a ele John Updike, Antonio Torres, Menalton Braff, Luiz Ruffato, Márcia Denser, Joca Reiners, Ivana de Arruda. Adorou. Quem conhece Brasília sabe que ao longo da W 3, que atravessa a cidade, os pontos de ônibus abrigam as estantes do centro cultural T Boné, com centenas de livros. Você apanha, leva, devolve outro dia, em outro ponto. As estantes ficam abertas dia e noite. Ninguém rouba, ninguém destrói. Acreditemos no povo.
(Ignácio de Loyola Brandão Publicado originalmente : O Estado de S. Paulo - 12/02/2010)
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